segunda-feira, 28 de março de 2016

David Belle's Parkour (tradução) - Pt 6

Tradução livre da versão em inglês do livro Parkour, de David Belle
Tradutor desta parte: Victor Silva (Kratos)

A parte anterior do livro encontra-se aqui.
A parte seguinte do livro encontra-se aqui.
O índice com todas as partes do livro encontra-se aqui.



O início


Tendo crescido com um pai cuja trajetória de vida foi tão extraordinária, você o admirava e teve vontade de ser como ele?


Na verdade, a primeira pessoa que admirei e tive como um modelo foi meu avô materno. Ele me criou desde meu nascimento, em abril de 1973, até meus catorze anos. Eu passei os primeiros dias da minha vida na casa dele em Fécamp, Normandia, e após uma pequena separação com a minha mãe em Boulogne-Billancourt (próximo a Paris), eu voltei a viver com ele por mais três anos em Vendée. Meu avô era viúvo e ele realmente cuidou muito bem de mim. Ele era um ex-bombeiro do pelotão de Paris - como meu pai. Ele trabalhou lá por trinta e dois anos. Ele também era um veterano da Segunda Guerra Mundial. Ele se tornou um viúvo quando ainda era bem jovem mas nunca se casou novamente. Ele tinha relacionamentos e casos, mas ninguém nunca sabia o que realmente estava acontecendo. Eu, pessoalmente, nunca vi nada, e eu vivia na casa dele. Talvez quando ele saía para uma caminhada ele na verdade estava indo ver uma namorada, mas ele nunca disse nada a ninguém. Eu acho que ele não queria impor uma madrasta aos filhos dele. Ele respeitava a eles, e igualmente a mim, ao ponto de não aparecer com uma mulher em casa. Ele era um homem muito quieto e discreto, e também tinha um auto-controle impressionante. Por exemplo: sempre havia um maço de cigarros em casa, mas ele fumava apenas um cigarro no domingo, após o almoço.

Eu respeitava como ele seguia a vida e como ele havia superado as dificuldades, e eu o admirava por isso. Ele realmente foi meu primeiro modelo de vida. Ele era um homem direto, muito honesto em sua vida pessoal e respeitado em seu trabalho. Meu avô nunca brigou com outro homem e não aprendeu arte marcial alguma. Ele era o oposto total do meu pai, que havia aprendido a lutar até a morte. Ele estava me ensinando um outro modo de vida. Ele nunca teve as habilidades que meu pai tinha, e nem o espírito. Para meu pai, o mundo externo era uma selva onde você tinha constantemente que ter cuidado e se proteger, ao passo que meu avô era mais sereno nos seus relacionamentos com o mundo. Isso equilibrou totalmente a minha educação. Sem meu avô, eu provavelmente teria caído em padrões excessivos, como meu pai. Eu me vejo equilibrado entre esses dois homens. Uma mistura de sabedoria e audácia, de respeito e rebeldia, de freio e ação. Tanto meu avô quanto meu pai são os pilares da minha vida. Eles me transformaram em quem eu sou hoje.

Como era a vida com seu avô?


Posso dizer que fui criado com certa disciplina. Meu avô me ensinou os grandes princípios da vida, as fundações de como se comportar na sociedade. Graças à sua experiência nos bombeiros, ele me mostrou por que é importante ter um estilo de vida saudável e um lar bem cuidado. Ele me contou de vezes em que foi chamado aos lares das pessoas e se viu em lugares muito modestos onde tudo era arrumado e limpo e, ao contrário, vezes em que se encontrou em apartamentos ricos onde tudo era bagunçado e sujo. Ele costumava me dizer: "Se qualquer coisa acontecer com você, se as pessoas tiverem que ir ao seu lar, você deve se certificar de que tudo está arrumado e limpo." Ele me ensinou a ser educado, a respeitar os outros e a dizer a verdade. "Você tem uma boca, use-a para falar. E ao invés de dizer besteiras, apenas diga a verdade ou coisas úteis, coisas que podem ensinar algo, que podem trazer algo aos outros." Ele também me impeliu a usar meu corpo e minhas habilidades físicas para fazer coisas úteis, provavelmente esperando que eu me tornasse um bombeiro também. Ele repetia: "Se você tiver que usar sua força física, faça-o por boas razões; ao invés de roubar uma casa, use essa energia para ajudar as pessoas." Graças a ele, eu entendi que sempre temos uma escolha na vida, uma escolha que pode te levar ao caminho certo ou ao caminho errado. "Com uma faca, você pode escolher se tornar um serial killer ou um escultor."

sexta-feira, 11 de março de 2016

Palavras e ações: Uma filosofia do Parkour

Tradução livre do artigo Words and Actions: A Parkour philosophy, de Stephane Vigroux
Traduzido por: Victor Silva (Kratos)


Algo que aprendi bem cedo quando eu comecei minha jornada no Parkour foi pensar duas vezes antes de abrir minha boca. Antes, durante e após os treinos. Tudo podia ser desafiado e testado na hora. Além de serem verdadeiras feras quando em ação, os veteranos do Parkour com quem eu treinei também eram muito cautelosos ao usar as palavras para falar de algum salto ou desafio.

Primeiramente, não há nada fácil demais. Respeite o salto. Respeite o obstáculo e o processo de superá-lo. Sempre. Eu fui pego raras vezes por David (NdT: Belle), após conquistar um salto ou obter sucesso em um desafio, dizendo: "isso foi fácil!". Ele instantaneamente me repreendia e me explicava que não é porque eu consegui realizar o salto que ele era fácil. Isso era arrogante e desrespeitoso para com o salto. Para ele, a relação e a conexão que ele criava com um obstáculo eram baseadas em respeito e valorização. Na maioria das vezes, é preciso bastante tempo e trabalho duro para conseguir realizar um salto, esse processo é feito de esforço e dor e não deveria ser retirado instantaneamente com um "foi fácil" imediatamente após o salto. Não era fácil até o último segundo antes de ser realizado.

Além disso, dizer que é fácil é para preguiçosos. Se eu dissesse que algo era fácil, instantaneamente eu me perguntava se eu poderia fazer quando cansado, em tempo chuvoso, na neve, à noite no escuro, sem aquecero corpo, com os olhos fechados, etc. E novamente eu tinha que ser cauteloso com a minha resposta, porque ela seria posta à prova imediatamente, todas as vezes. Mesmo que algo fique mais fácil, sempre há espaço para aperfeiçoamento e melhoria. Dizer que é fácil faz com que você pare de dificultar as coisas e lhe dá uma satisfação superficial.

Outra coisa com a qual eu me tornei atento foi fazer afirmações sobre os saltos ou desafios que eu pensava que podia fazer. Eu me lembro que uma vez à noite, após um treino, estávamos relaxando na casa de Romain Moutault (um dos traceurs do grupo de Lisses) quando começamos a falar sobre algumas coisas e sobre movimentos que pensávamos que conseguiríamos fazer em condições difíceis. Sendo o criador de problemas e sempre indo pelo caminho mais difícil e complicado, David com frequência me perguntava o que eu pensava de um salto ou um movimento. Mas quando você o conhece, você sabe que para ele há apenas UMA coisa que importa. "Você pode fazer aqui, agora?" Ele estava tentando ver se eu era sensato com minhas respostas, tentando achar o ponto fraco. Em certo ponto, ele mencionou um salto na Universidade de Evry e perguntou se eu poderia fazê-lo à noite. Eu pensei cuidadosamente e disse que sim. Com um sorriso no rosto, a resposta dele foi: "Ok! Vamos fazê-lo então!". De uma conversa relaxada em um quarto aconchegante, agora estamos na minha van, dirigindo para Evry.

A regra era simples: assim que eu saísse do carro eu tinha que ir direto para o salto e, sem aquecimento, no escuro, realizá-lo na primeira tentativa. Enquanto eu dirigia, eu tentava visualizar o salto e me aquecer internamente.

Aqui estou, encarando o salto, David olhando para mim e contando: 3, 2, 1... PULE. E eu pulei, errei a distância, aterrisei muito nos calcanhares e escorreguei, caí do muro e acabei com meu traseiro no chão. Eu fiquei tão irritado com a situação e comigo mesmo. Eu estava fisicamente bem, apenas com um arranhão no traseiro, mas realmente desapontado ao encarar a dura realidade naquela noite. David não teve que falar muito mais, eu tinha aprendido a minha lição.

Esse foi um de muitos exemplos, mas o princípio continuou o mesmo. 1. A não ser que você esteja 100% seguro de que consegue fazer alguma coisa, não fale que consegue. 2. Não existe nada fácil. Existem coisas para as quais você treina pesado e acaba ficando melhor. E essa situação de "melhor" pode ser indefinidamente dificultada até o ponto em que você não consiga mais fazer tal coisa. O jogo não tem fim e você nunca é um mestre.

Eu ouvi muitas vezes "Isso é fácil" e "Eu consigo fazer isso", sem nenhuma pista sobre o significado mais profundo dessas palavras. Ações falam mais alto do que palavras, e o Parkour é um mundo onde isso é muito real. Muitas pessoas comparam o Parkour com as artes marciais em algumas formas. Eu acho que se há similaridades, uma delas seria o código de ética e atitude. A filosofia e a mentalidade do Parkour começam com esses tipos de princípios em mente o tempo todo. Permaneça humilde, procure pela dura realidade, pois o resto é apenas ilusão.

Stephane Vigroux

quarta-feira, 9 de março de 2016

David Belle's Parkour (tradução) - Pt 5

Tradução livre da versão em inglês do livro Parkour, de David Belle
Tradutor desta parte: Leo Silva
Revisor: Victor Silva (Kratos)

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Retornando à França, seu pai tentou entrar em contato com família dele, voltar pro Vietnã?


Quando ele estava na escola em Dalat, dois ou três de seus irmãos vieram visitá-lo. Disseram que seu pai havia sido assassinado. Então ele se viu órfão. E o que houve com seu pai fez com que ele se tornasse ainda mais duro e fechado. Ao chegar à França foi posto em uma família adotiva, porém permaneceu solitário. Após alguns anos, ele foi capaz de entrar em contato novamente com alguns membros de sua família que também se refugiaram na França. Alguns primos lhe disseram que sua mãe e irmãos também haviam sido trazidos à França. Ele viu a mãe dele novamente cinco ou seis vezes, mas os sentimentos já não eram os mesmos. Em Dalat, ele conviveu com crianças que haviam perdido os dois pais, e com isso aprendeu a se desprender de todos os laços de família, assim como elas haviam feito. Era como se todos os sentimentos e emoções fossem apagados para transformá-los em pequenos soldados. Ele se via completamente afastado de sua família, especialmente sua mãe, com quem nunca teve um bom relacionamento. Por alguma razão parecia que ela nunca havia gostado dele quando criança. Ele se lembra de ser deixado de lado pelo resto da família. Sentia como se sua mãe o considerasse amaldiçoado por ser o sexto ou sétimo filho a nascer, e em algumas tradições vietnamitas crianças que nasciam nessas condições eram consideradas mau agouro. Meu pai me falou muito sobre sua mãe e sua infância, e ele se lembrava de muitos detalhes. Por exemplo, ele me contou que moravam perto da selva e que, vez ou outra, tigres apareciam próximos à vila. Alguns até entravam nas casas. Ele raramente comentava sobre voltar ao Vietnã. Porém no fim de sua vida, ele falou um pouco mais sobre isso; eu queria poder ter dado essa viagem a ele antes de ele partir; eu queria ter conseguido o dinheiro para isso. Mas ele partiu na véspera do ano novo de 1999, antes que eu conseguisse...

quinta-feira, 3 de março de 2016

David Belle's Parkour (tradução) - Pt 4

Tradução livre da versão em inglês do livro Parkour, de David Belle
Tradutor desta parte: Leo Silva
Revisor: Victor Silva (Kratos)

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As habilidades físicas dele eram herança de família?


De maneira alguma. Isso não tinha nada a ver com família dele. O pai dele não era um atleta, nem a mãe. Meu pai trabalhou pesado para desenvolver suas habilidades físicas. E quando digo trabalhou duro, era pra valer. Ele começou a treinar feito um maníaco quando ele caiu em um orfanato. Durante a noite, enquanto as outras crianças iam dormir, ele saia da cama pra correr na floresta, subir em árvores, saltar, fazer flexões, se equilibrar. Ele nunca parava, repetia os movimentos vinte, trinta, cinquenta vezes. Ele socava árvores com os punhos nus para torná-los mais fortes e resistentes, batia com sacos de pancada em suas bochechas e nariz para torná-los mais firmes e menos sensíveis à dor. Quando me contava suas histórias de infância, eu não conseguia compreender por que ele passou por esse treinamento tão insano, por que ele infligia tanta dor a si mesmo. Então, um dia ele me contou que havia sofrido abusos enquanto esteve na casa do seu tio... Ao contrário da maioria das crianças, ao invés de se fechar, ele se impulsionou para frente para construir um casco forte. Em algum ponto, sozinho no orfanato, algo despertou em sua mente e ele disse a si mesmo: "de agora em diante, ninguém mais tocará em mim! Chega!" Quando ele descreveu aquele momento para mim, eu entendi: eu nunca havia ouvido alguém dizer aquilo com tanta força como ele disse. Aquele "Chega!" significava muito. Ele havia passado por muito sofrimento e, pelo resto da sua vida, decidiu que nunca seria uma vítima, nunca mais.

Então ele literalmente mudou, tanto mental quanto fisicamente?


Absolutamente. Foi com um trabalho físico completo juntamente com uma força mental extraordinária. Mesmo aos sessenta anos de idade, meu pai continuava a correr e realizar saltos inacreditáveis. Eu o via carregar pesos incríveis. Ele treinava arremesso de facas e lâminas em alvos e seus movimentos eram sempre perfeitos. Junto com meus amigos - sete ou oito adolescentes -, nós nos reuníamos para tentar derrubá-lo no chão, mas ele não se movia nem um centímetro, continuava lá tranqüilo, com suas mãos nos bolsos, usando seus chinelos! Sua força física era fenomenal e ele sempre mantinha um sorriso no rosto, nunca mostrava o menor sinal de dor ou de esforço. Eu podia apenas acreditar em tudo o que ele me contou sobre sua vida e suas experiências. Além disso, ele nunca se gabou e também me contou a respeito do seu lado sombrio, suas fraquezas, seus erros. Ele não fingia ser o pai perfeito na frente de seu filho. Nunca me disse que era o melhor ou o mais forte. Nunca.

Falando sobre o que ele havia passado em sua juventude, ele me contou uma história que me impressionou profundamente. Enquanto estava sendo transportado de volta à França, ele sofreu de uma hérnia testicular, que infeccionou. Ele teve que passar por uma cirurgia bem ali, em alto mar, em um barco cheio de refugiados. Não lhe deram nenhum anestésico - apenas um pedaço de madeira para morder. Eles o abriram e cortaram. Eu acho que isso o afetou profundamente, tanto fisicamente quanto psicologicamente, sabendo as conseqüências de tal remoção para um homem. Ele tinha 16 anos naquela época e deve ter se perguntado se algum dia chegaria a ter filhos ou mesmo se iria sobreviver. Sua força também veio dessa situação. Ele foi fisicamente diminuído, mas ele queria mostrar que isso não o impediria de viver a vida ao máximo, de ser mais forte que os outros e de seguir seu próprio caminho. Ele era respeitoso com seus superiores, na hierarquia militar, mas se acreditasse que algo estava errado, se opunha e era teimoso e inabalável feito uma parede. Quando começou no pelotão de bombeiros, seu superior o fez limpar banheiros. Ele obedeceu para mostrar a seu chefe que o respeitava, mas também o fez entender que jamais o faria novamente. Sem violência - apenas palavras e confiança... Meu pai tinha um espírito livre, e queria que sua liberdade fosse respeitada. Às vezes isso produzia efeitos negativos. Como a maioria das ex-crianças soldados, ele tinha problemas para se adaptar, impulsos que ele teve que aprender a controlar. Eu via nele um homem lutando contra seus próprios instintos, por toda a vida. Em algum ponto ele aceitou ser parte do sistema, mas às vezes o seu rebelde interior vinha à tona. Por exemplo, ele se negava a pagar impostos. Para ele aquele era seu dinheiro, um dinheiro ganho com trabalho duro, e ele não via por que deveria entregá-lo de volta ao governo. Comparado a outros pais, o meu realmente parecia não pertencer a esse mundo.