segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

David Belle's Parkour (tradução) - Pt 3

Tradução livre da versão em inglês do livro Parkour, de David Belle
Tradutor desta parte: André Sanches (Sony)
Revisor: Victor Silva (Kratos)

A parte anterior do livro encontra-se aqui.
A parte seguinte do livro encontra-se aqui.
O índice com todas as partes do livro encontra-se aqui.



Meu pai, o herói


A fundação do parkour vem do seu pai e da trajetória de vida extraordinária dele. É preciso cavar fundo nela para encontrar as raízes do que ele passou para você, tanto como um pai quanto como um homem. Pode nos dizer quem era Raymond Belle?


Meu pai nasceu em 1939 em Hué, Vietnã, de um casal misto. O pai dele era um médico francês do exército colonial e a mãe dele era vietnamita. Ele veio de uma família numerosa - ele tinha cerca de dez irmãos. Eles viviam bem, em uma bela casa, eram donos de cavalos. Mas o conflito pela independência do Vietnã se transformou em uma guerra, e sua infância virou um pesadelo. Enquanto ele estava em férias na casa de um tio, ele encontrou-se afastado de sua família por uma linha de frente que dividiu o país em duas partes. Ele não podia voltar para seus pais e tinha que ficar nesta família, onde ele passou por momentos difíceis. Depois de um tempo, o tio que não queria cuidar mais dele o colocou em uma escola militar perto de Dalat, conduzida pelos franceses. Meu pai tinha sete anos na época. Foi um verdadeiro choque para ele. Ele não tinha pedido nada daquilo e se viu, da noite para o dia, em um acampamento para órfãos. Não era o que ele tinha sido criado para esperar: ele veio de uma família rica e de repente encontrou-se em uma vida miserável, a anos-luz do que ele tinha conhecido até então; uma escola militar onde você tinha que lutar para ganhar respeito, onde sua mãe não estava mais ali para te confortar. Em Dalat, era correr ou morrer - a sobrevivência do mais apto. A guerra da Indochina (pré-guerra do Vietnã) estava no auge e aqueles orfãos eram treinados para se tornarem soldados. Eles aprendiam técnicas de luta, longas caminhadas nas montanhas, montagem e desmontagem de armas no escuro... Tudo o que eu aprendi quando estive no exército, com dezenove anos. Mas ele teve que fazer quando criança, ele não teve escolha. Para sobreviver, ele rapidamente entendeu que não podia confiar em ninguém além de si mesmo e que tinha que se tornar o melhor lutador.

Quanto tempo ele ficou nessa "escola"?


Ele ficou lá por nove anos. Após a derrota de Dien Bien Phu, em 1954, ele foi enviado de volta para a França num barco. Ele encontrou-se em um acampamento com outros refugiados na região de Lyon. O exército francês cuidou dele e de sua educação militar até 1958. Um ex-residente de Dalat, que tinha ficado impressionado com as capacidades físicas dele, sugeriu que ele se juntasse ao prestigioso Pelotão de Bombeiros de Paris. Isso foi provavelmente o melhor conselho que ele recebeu. De repente, tendo sido treinado para lutar e matar, meu pai encontrou-se salvando vidas. Não era originalmente sua vocação e ele teve que se adaptar, mas ele se destacou ao fazê-lo. Isso deu um sentido para todo o seu treinamento na selva vietnamita. Ele colocou seu coração e sua alma nisso. Ele sempre era  voluntário para missões perigosas. Se houvesse um telhado ou uma sacada para subir, ele iria. Seu senso de coragem, auto-controle e auto-sacrifício eram impressionantes: ele poderia dar a vida para salvar a de outra pessoa. Seus companheiros do pelotão o apelidaram de Kamikaze, mas esse não é o nome que eu daria a ele, pois tal nome transmite um sentimento imprudente e auto-destrutivo, ao passo que ele não estava pronto para se lançar em qualquer situação que aparecesse. Ele era apenas o primeiro a ir, antes dos outros. Enquanto seus colegas bombeiros ainda estavam em seus medos, hesitantes, ele iria porque ele já havia avaliado perigo e pesado os riscos em sua mente. Ao longo de sua carreira, meu pai colecionou resgates difíceis que lhe renderam diversos prêmios e medalhas. Seus chefes sabiam que podiam sempre contar com ele. Um dia, quando ele estava de folga, ele foi chamado para uma missão perigosa: retirar uma bandeira da torre da catedral de Notre Dame, colocada lá por manifestantes. Ironicamente, era uma bandeira vietcongue. Ele me mostrou artigos de jornais sobre essa missão, que remonta a 1969, nos quais ele está no céu, pendurado em um cabo sob um helicóptero, se aproximando de Notre Dame. Ao ler o artigo, eu estava me perguntando por ele e não outro bombeiro? Então compreendi que ele tinha esse algo a mais, e esse algo era confiança. Ele tinha uma auto-confiança total. Quando ele dizia que poderia fazer alguma coisa, as pessoas acreditavam nele. Ele sempre teve essa auto-confiança em todas as áreas da sua vida. Depois de deixar o pelotão de bombeiros em 1975, ele trabalhou para empresas privadas e foi responsável pela segurança de grandes edifícios parisienses, como a Torre de Montparnasse. E a cada vez, seus empregadores ficavam impressionados com a sua eficiência. Quando ele estava no comando, tudo se desenrolava suavemente. Ao longo de sua carreira, ele também se destacou por seus feitos atléticos. Ele foi parte da equipe de treinadores de ginástica dos Bombeiros de Paris, fazendo demonstrações para bombeiros jovens ou ao público. Ele também foi várias vezes o campeão militar nacional no salto em altura e no salto em distância.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Mova-se como um ser humano: Por que você não deveria "fazer exercício"

Tradução livre do artigo Move Like a Human: Why You Shouldn’t Exercise, de Dan Edwardes da Parkour Generations
Traduzido por: Victor Silva (Kratos)


Você está pronto para isso?

Você precisa parar de fazer exercícios. Em vez disso, você precisa começar a se movimentar.


O que eu quero dizer com isso? Bem, quando pensamos em exercícios, nós tipicamente imaginamos repetições, de alta frequência e pouca variedade, de padrões de movimentos consecutivos e limitados. Você vai à academia ou à quadra de esportes ou à pista de corrida 3-5 vezes  por semana por 30-60 minutos, fica muito suado e sem fôlego repetindo uma rotina de movimentos altamente previsível que pode ou não seguir as funções naturais do corpo humano. Até mesmo os paradigmas de 'treinamento funcional', que agora permeiam a indústria fitness, na realidade estão apenas encontrando padrões novos para colocar no lugar dos velhos - kettlebells no lugar de halteres, pull ups em argolas no lugar de pull ups em barras fixas - , e acabam produzindo os mesmos resultados: atletas com tecidos especificamente fortalecidos junto com tecidos subdesenvolvidos, levando a cargas não saudáveis, deformações e lesões.



Nossos corpos não foram feitos para isso. Esse modo de se mover - explosões curtas e intensas de variedade limitada, cercadas de horas de inatividade e um modo de vida sedentário - é um fenômeno muito recente na evolução humana. Talvez tenha alguns poucos séculos, no máximo. Não é a finalidade do corpo, não nos alimenta fisica ou mentalmente, e os resultados são evidentes na debilitação física geral e na falta de habilidades de movimentação do ser humano moderno. O treinamento fitness ou é cumprido para propósitos estéticos - queimar gordura e construir físicos musculares - ou para suplementar práticas esportivas específicas que têm baixas demandas em termos de complexidade e adaptabilidade de movimentos. Olhe, por exemplo, a definição atual de agilidade - "trocar de direção em alta velocidade" - e me diga se ela não apareceu como resultado de esportistas competidores que precisam se esquivar de seus oponentes. Mas se essa é a sua definição de agilidade, você nunca viu como um macaco se move, ou um leopardo. Ou, de fato, uma criança brincando.

Nossa movimentação deve ser muito mais: altamente variada, constantemenete em mudança e em adaptação, trabalhando com alinhamentos e demandas estranhas, desafiando a mente tanto quanto o corpo... E isso é o que leva à saúde: não ao fitness, não às forças especializadas, não a um colapso físico gradual - à saúde. Um conceito bem diferente.

Exercício é uma parte da movimentação, só isso. É uma parte útil, às vezes, e pode ser divertida, desafiadora, recompensadora, e construir uma comunidade. Mas é apenas isso: uma parte. Limitar seu conceito de movimentação a qualquer que seja sua forma de exercício é limitar seu potencial àquela forma bem restrita de movimento.

A toda hora nos perguntam porque atletas praticantes de Parkour são tão habilidosos, tão fortes e ágeis e tão capazes de uma forma geral. A resposta não está em nenhuma técnica mágica ou método de treinamento. Na verdade, a resposta é encontrada na ausência de um único método de treinamento. É porque praticantes de Parkour se movem completamente, propriamente e holisticamente, e tipicamente eles fazem isso durante uma boa quantidade de tempo todos os dias. A brincadeira deles se tornou sua disciplina. Eles seguiram sua real natureza.



Além disso, eles deixaram a movimentação "vazar" para todos os momentos do dia - brincando com a arquitetura que encontram enquanto caminham, experimentando novos movimentos enquanto relaxam no parque, e até mesmo andando muito mais para explorar o ambiente e encontrar bons pontos de treino. Parkour é uma verdadeira cultura de movimento, uma das poucas encontradas nas modernas sociedades industrializadas.

A chave para desenvolver igualmente todas as partes do seu corpo, e assim ser holisticamente saudável, é usar seu corpo de forma igual e como um todo. Apenas correr, não - antinatural. Apenas levantar pesos, não - antinatural. Apenas escalar, apenas rastejar, apenas pular, apenas jogar squash - não, não, não e não. Sozinha, qualquer uma dessas formas de movimentação promoverá um desenvolvimento antinatural e não saudável. Mas misture tudo, combine todos esses movimentos e coloque o corpo em padrões de movimentação holísticos que requerem constante adaptação e variação, e você se aproximará mais da forma como desenvolvemos essa forma física incrivelmente capaz.

Mas também é um erro isolar esses componentes de movimentação natural e pensar que isso será efetivo: combinações de técnicas separadas praticadas consecutivamente mas ainda isoladamente. Isso é perder o ponto inteiramente - pensar que se pode desconstruir a necessidade dos nossos corpos por padrões de movimentos variáveis e complexos, e substituir isso por subconjuntos treináveis - como, por exemplo, se equilibrar em pedaço de madeira por 30 minutos, ou ficar executando apenas um movimento repetidamente.

O segredo é aplicar esses componentes como partes de um todo. Movimento é mais do que a soma das suas partes. O Parkour produz humanos que parecem super capazes simplesmente porque todo seu paradigma de treino, desde o primeiro dia, são desafios de movimentação que não são excessivamente desconstruídos ou dividos em componentes. O cérebro, o sistema nervoso, os tecidos, tudo é testado igualmente e todo o sistema tem que trabalhar em uníssono. Fluindo.

Eu acho que isso é empírico, e não teórico. De longe, o grupo de humanos mais competente e adaptativo que eu encontrei é a comunidade do Parkour. Eles são generalistas especialistas. Não tão especializados como outros esportes e exercícios - saltadores de distância pulam mais longe, levantadores de peso conseguem mover mais peso, corredores de velocidade conseguem cobrir 100 metros mais rapidamente -, mas praticantes de Parkour são mais capazes, de uma forma geral, e têm um patamar mais alto de fisicalidade, movimentação natural e integração corpo-mente do que qualquer outra subcultura atlética que eu já encontrei.

Quer uma prova? Visite o YouTube e veja a variedade, a complexidade e a escala de movimentos que praticantes de Parkour fazem regularmente, e fazem por diversão e com facilidade. Então, tenha em mente que a vasta maioria desses indivíduos nunca seguiu uma abordagem programada e padronizada de exercícios, nunca calculou sua carga máxima de repetição única (1RM), e nem fez treinamento de ginástica - eles são produtos de constantes desafios cada vez mais difícieis de movimentação adaptativa nos seus terrenos naturais, sejam eles rurais ou urbanos. Eles podem se adaptar a quase qualquer outro paradigma com razoável facilidade, são experts em administrar risco e medo, e seu treinamento traz a eles um profundo prazer e crescimento em todos os sentidos. Eles não começaram desse jeito, eles desenvolveram essas habilidades e atributos com o tempo. Eles não são super-humanos ou abençoados geneticamente, e eles vêm em todas formas e tamanhos. Eles são você depois de anos de treinos de movimentação, e não de exercícios.



Então, quais são os componentes chave para a saúde do movimento? Aqui está meu top-3:


  1. Adaptação: paradigmas ou ambientes de treinos repetitivos criam alienação, danos por excesso de uso e capacidade limitada. Varie sua rotina de treinos e seus padrões de movimentação, e explore seus ambientes ao máximo. Grunhir e se esforçar por repetições infinitas de exercícios isolados e inúteis pode queimar gordura e  fazer seus músculos ficarem maiores, mas não fará de você o verdadeiro "movimentador" que você deveria ser. Misture, brinque, explore, quando um desafio de movimentação o cansar, comece a trabalhar em algum outro para deixar seu corpo se recuperar. Não existem "dias de braços" ou "dias de pernas", existem apenas dias do corpo inteiro. Deixe tudo mais forte e mais móvel em equilíbrio com todo o resto.
  2. Mover-se holisticamente: evite desconstruir demais seu movimento. Vou dizer novamente: movimento é mais do que a soma das suas partes. Se você reduzir seus padrões para sequências lineares e fechadas, adivinhe só - será apenas com isso que você conseguirá lidar. Direcione seu pensamento para o intuito de encontrar desafios de movimentação que sejam peculiares, tecnicamente desafiadores, e requiram que o corpo pense para conseguir resolver o problema. Encontre desafios de movimentos únicos treinando ao ar livre em estruturas que não foram planejadas com esse propósito, e as micro-variações que vão surgir em uma habilidade regular lhe farão um bem imenso.
  3. Treinamento orientado a tarefas: seus movimentos diários devem incluir desafios reais, e com isso eu quero dizer que eles precisam ser tarefas que você não tem certeza de que vai conquistar na primeira tentativa. Eles devem ser difíceis o bastante para que, para superá-los, você tenha que engajar todo o seu sistema: mente, corpo e espírito. Não tenha medo de se pressionar dessa forma; a maioria dos ganhos são feitos naquela pequena área no limite das suas capacidades, onde o sucesso e o fracasso interagem. Isso significa uma boa mistura de dificuldade técnica, física e mental. Isso vai exigir que o seu consciente relaxe um pouco e deixe suas habilidades inconscientes - suas capacidades atléticas e animalísticas naturais - venham à tona para ajudá-lo a ter sucesso. E elas virão. Elas se escondem em todos nós, logo abaixo das nossas superfícies programadas em excesso e desconstruídas.
Eu não acho que dominar nossa movimentação seja a coisa mais difícil do mundo. Ela simplesmente requer que usemos nossos corpos da forma que eles podem e deveriam ser usados. Isso, de um ponto de vista evolucionário, significa cruzar terrenos e superar obstáculos regularmente. O que é realmente suspreendente é que todos temos esse potencial, e mais de dez anos treinando e ensinando Parkour removeram da minha mente a menor dúvida de que qualquer um com vontade o suficiente pode alcançar essas incríveis técnicas e habilidades de movimentação. A comunidade do Parkour continua a crescer cada vez mais, com os adolescentes de hoje superando com facilidade os movimentos mais difíceis de apenas dez anos atrás. Eu penso que é porque o Parkour revela nosso verdadeiro potencial holístico como seres humanos. E vai continuar indo a alturas mais altas.

Então não vamos tentar fazer exercícios como máquinas, ou nem mesmo nos mover como animais - vamos nos mover como seres humanos e dar o próximo passo.

Dan Edwardes

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

David Belle's Parkour (tradução) - Pt 2

Tradução livre da versão em inglês do livro Parkour, de David Belle
Tradutor desta parte: Victor Silva (Kratos)

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Introdução

Por que este livro?


Eu não posso falar sobre Parkour sem falar sobre o meu pai. Eles estão indeletavelmente ligados. Raymond Belle é o alicerce de tudo - da minha vida, da criação do Parkour e seu desenvolvimento mundo afora. Sem ele, não haveria David Belle e nem Parkour. Este livro não é apenas um tributo a ele, mas também uma explicação do que ele passou para mim, toda a filosofia de vida que estava no núcleo desta disciplina e continua me guiando até hoje.

O objetivo deste livro não é dar lições ou, menos ainda, me promover. Eu só quero que as pessoas entendam o Parkour como ele deveria ser. Para muitos, nós somos apenas "os caras saltando de telhado em telhado", enquanto que esta disciplina é muito mais do que isso. Se nós pulamos de um prédio para outro, é apenas porque as cidades foram construídas; se estivessemos vivendo em árvores, nós simplesmente pularíamos de árvore em árvore, nossas casas seriam pedras e nós pularíamos de pedra em pedra. Não importa onde você esteja, não importa o seu ambiente, Parkour é ir aonde seu corpo pode te levar, aonde a sua força de vontade te conduzir. Além do método de treinamento físico, além da disciplina do movimento e de cruzar obstáculos, Parkour é uma abertura para um mundo novo em folha, uma forma de aprender a se conhecer melhor, um novo modo de vida. Hoje eu posso ver que muitas pessoas não entenderam essa busca pela própria identidade, essa busca pelo próprio "eu", que o Parkour é. Não é sobre pular obstáculos para se tornar o melhor, ou se machucar e correr riscos para provar que você existe. Mesmo se no início havia um pouco disso em mim, eu logo aprendi que o excesso era inútil. Meu pai costumava dizer: "Não ative coisas negativas, não tente se machucar; a vida te dará oportunidades o bastante para aprender sobre dor e sofrimento." Eu acabei entendendo que eu não precisava passar pelo que meu pai passou para ser um homem respeitável. E muito naturalmente eu respeito as outras pessoas, mesmo se elas não conseguem fazer metade do que eu faço no Parkour. Ser um homem não é ser o mais forte, o mais durão, o que pula mais alto ou mais longe. Meu pai sempre pôs muita ênfase nisto: "Ser um homem é, acima de tudo, honrar a própria palavra. Se você disser que fará algo, então faça. Até mesmo as coisas mais servis." Um homem pode ser o mais forte do mundo, mas se ele não cumprir a sua palavra, as pessoas ao seu redor vão acabar percebendo isso e perdendo toda e qualquer forma de respeito para com ele. Os jovens têm uma grande dificuldade com isso hoje: cumprir a própria palavra. Eles prometem coisas, eles gostam de se gabar, de se mostrar, mas são apenas palavras vazias. Quando chega a hora de transformar palavras em ações, eles simplesmente somem.

Alguns traceurs* reinvidicam a criação do Parkour como se eles tivessem feito tudo sozinhos. Mas quando estão sendo entrevistados, eles são incapazes de explicar esta disciplina, de expressar seu verdadeiro significado. Mas houve a história do meu pai e de tudo que ele me deu. Eu também poderia ter dito que eu criei essa nova disciplina sozinho, eu poderia ter dito todo tipo de porcaria, eu poderia ter mentido e colocado um rótulo em mim mesmo: David Belle, Inventor do Parkour. Mas não, eu não fiz isso. Meu pai passou por coisas terríveis e o sofrimento dele me trouxe aonde estou hoje. Eu devo a ele esse respeito, essa gratidão. Depois de anos demais que eu passei sem falar sobre esse assunto realmente pessoal, eu decidi contar a história do meu pai e a verdadeira origem do Parkour. Eu quero falar disso para todo mundo que estiver interessado no Parkour ou que gostaria de começar a praticá-lo, para todos os jovens que têm tantas perguntas sobre tantas coisas e não têm necessariamente seus pais ao lado para ajudá-los, ou que se sentem perdidos como eu me senti quando era um adolescente.

É claro que a história do meu pai não é uma referência absoluta - longe disso - e ele também não é o exemplo definitivo a se seguir. Mas os jovens podem olhar ao redor de si, na própria família, e deve haver alguém, um modelo, que eles possam seguir. Alguém verdadeiro, com valores reais, que pode conduzi-los pela vida. Todos conhecemos alguém entre nossos parentes que passou por coisas extraordinárias na vida e que pode nos ensinar a permanecer autênticos e a levar uma vida de bem. Meu pai me alertou sobre as armadilhas da vida e me protegeu de pessoas negativas. Se eu tivesse prestado atenção a cada vez que me disseram "Ei, garoto, não suba esse muro!", eu nunca teria me tornado quem eu sou hoje.

Raymond Belle foi meu pai mas também foi meu mentor. Provavelmente seriam necessários dez livros para falar de toda a sua vida. Eu nunca terei tanta experiência e carisma quanto ele, mas ao menos eu tenho orgulho de contar a sua história aqui, e passar todas as coisas que ele me passou, palavra por palavra, sem acrescentar nem omitir nada.

*traceur: praticante de Parkour



sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

David Belle's Parkour (tradução) - Pt 1

Tradução livre da versão em inglês do livro Parkour, de David Belle
Tradutor desta parte: Victor Silva (Kratos)

A parte seguinte do livro encontra-se aqui.
O índice com todas as partes do livro encontra-se aqui.



Prefácio (por Luc Besson*)

*Diretor de B13 - 13º Distrito

À primeira vista, ninguém é mais pé no chão e enraizado do que David. Exceto, talvez, uma árvore. Precisão, concisão de palavras e de sentimentos. Cada frase é cuidadosamente pensada e precisamente direcionada antes de ser dita. Nada é deixado ao acaso. Ele mede cada palavra como se fosse se pendurar nela, como uma barra de aço ou um beiral de concreto.

Ele precisa dessa confiança para se expressar, para avançar... para voar.

Uma vez que todos os dados dos quais ele depende estão listados na sua mente, ele te segue para qualquer lugar. Sua confiança é absoluta. Em você. Nele mesmo. Nos elementos. Mas a característica mais impressionante deste jovem homem de raízes tão profundas no seu ambiente é quando ele deixa o mundo pedestre para trás.

Observá-lo flertar com a gravidade é algo totalmente incrível. Ele brinca com o vazio, pincela o concreto, voa com o vento. Ele pode criar tantas estórias no ar quanto uma dançarina de bailé no piso de um salão de ópera.

Eu senti o mesmo tipo de liberdade ao praticar scuba diving, onde a não-gravidade permite que você mergulhe de cabeça em abismos subaquáticos e faça uma curva na ponta dos dedos.

O treinamento de David frequentemente é longo, e ninguém sabe ao certo o que se passa em sua mente. Mas quando ele está pronto, a ação começa e é pura elegância, brincando com tudo, incluindo nossa visão. Na sala de edição, houveram cenas que eu tive que assistir várias vezes em câmera lenta para entender como ele havia conseguido fazê-las.

David chegou a um domínio tão completo, não somente de si mesmo mas também dos elementos ao seu redor, que às vezes ele é difícil de se alcançar. Para ele, tudo parece banal e inútil. E ele relutantemente faz com que você meça cada uma das suas próprias palavras e ações também. Seu coração dispara quando você tem dizer a ele "Você pode confiar em mim", porque você sabe que não pode decepcioná-lo.

Talvez por isso é mais fácil ele confiar em uma beira de concreto do que em um ser humano. O concreto nunca o traiu. A confiança dele é uma grande honra, e eu espero tê-la merecido.

Nós nos encontramos pela primeira vez há alguns anos. Na época, minha equipe e eu tínhamos nos deparado com o grupo Yamakasi e estávamos preparando um filme com eles. Mas surgiu um problema: ambos os nomes Yamakasi e Parkour haviam sido registrados por um oitavo homem. Eu entendi que esse oitavo homem originalmente tinha sido parte do grupo mas que ele havia tentado a sua própria sorte - sozinho - nos EUA, alguns meses antes.

Eu sugeri reintegrar o oitavo homem ao grupo, mas todos recusaram. Aparentemente, eles estavam furiosos por ele ter deixado o grupo. Ressentimento. Vingança. Nada fora do comum. Mas na verdade - como eu entendi mais tarde enquanto assistia a vídeos desse oitavo homem -, ele era muito melhor e mais forte do que eles. O nome dela era David Belle.

Então organizamos uma reunião entre os Yamakasi, David, os produtores do filme e eu.

David não disse uma palavra e deixou que seu representante falasse por ele. Enquanto isso, os Yamakasi tagarelavam como um bando de galinhas brigando por um ovo.

No fim dessa reunião barulhenta, eu fiz uma proposta simples para David: "David, deixe que eles façam esse filme conosco e, depois, eu farei um filme com você, sozinho. Você tem a minha palavra!"

Ele olhou para mim por um segundo e disse: "Ok." Até então, nós só conhecíamos um ao outro há cerca de uma hora. Ele rapidamente deixou a sala e eu só o ouvi novamente quando o apresentei para Cyril Raffaelli e o projeto B13 - 13º Distrito. Nesse dia, ele me deu seu primeiro sorriso.

Em um mundo que se deteriora, onde banqueiros movem bilhões brincando com a sorte, onde toda a política é apenas mídia, onde suborno, consumo de drogas e traições acontecem mais rápido do que as leis que lutam contra isso tudo, onde o próprio planeta está sendo esgotado pela nossa falsidade, é bom manter alguns pontos de referência.

David é um desses pontos. Ele é um herói moderno, que cresceu entre paredes de concreto e está traçando um novo rumo para nós, o rumo do qual nunca deveríamos ter nos desviado: o rumo da dignidade humana.

Luc Besson

David Belle's Parkour (tradução) - Índice

Tradução livre da versão em inglês do livro Parkour, de David Belle

Essa obra é a transcrição de uma entrevista feita com David pelo entrevistador Sabine Gros La Faige.

O livro ainda está em processo de tradução. Cada parte que for traduzida será incluída nesse índice conforme for finalizada.

Epígrafe

"Se dois caminhos se abrirem diante de você, escolha sempre o mais difícil."

Prefácio

Parte 1

Introdução

Parte 2

Meu pai, o herói

Parte 3
Parte 4
Parte 5


O início

Parte 6
Parte 7
Parte 8
Parte 9

 

Aprendizado e Treinamento


Parte 10
Parte 11
Parte 12



terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Movimento é música: Como fazer seu Parkour fluir

Tradução livre do artigo Movement Is Music: How To Make Your Parkour Flow, de Ben Musholt
Traduzido por: Victor Silva (Kratos)


Então, agora você já se sente confortável com saltos de precisão, passadas, e técnicas básicas de equilíbrio. Seu rolamento está firme e não causa dores. Você consegue transpor obstáculos de altura média com confiança. E você está começando a subir paredes altas com velocidade.

Parabéns! Agora você está pronto para começar a encaixar tudo isso para a parte divertida do seu treino. Uma vez que você tem um comando básico dos movimentos comuns do Parkour, é hora de começar a exercitá-los em sequência.

Pense em movimento como música


Nas artes do movimento, como artes marciais e dança, a introdução a sequências de movimentos pode ser vista do modo como músicos aprendem a fazer música partindo de notas básicas. Quando uma flautista entende como criar os tons desejados manipulando a flauta com sopro e com os dedos, ela pode passar a ligar notas em sequência e criar frases musicais. O que começa em pedaços acaba se combinando e harmonizando. Ficando competente em frases musicais, ela ganha a habilidade de encaixá-las em uma bela música.

Os instrutores da APEX Movement, Ryan Ford e Amos Rendao, levam a metáfora movimento-como-música um passo além para dizer que à medida que suas técnicas de Parkour melhoram, você pode começar a improvisar sequências de movimentos, da mesma forma que um músico de Jazz cria música no exato momento em que está tocando.

Hora de criar sua música


Então, isso é o que você vai começar a fazer nesta fase do seu treino de Parkour. Pegue algumas das técnicas que você aprendeu e as junte em um fluxo (flow) de movimento.

No nível mais básico, comece conectando dois movimentos similares, como duas variações de transposições (vaults). Encontre um par de obstáculos que estão afastados por uma distância apropriada para que você transponha um deles, dê alguns passos e então transponha o outro. Comece apenas fazendo um step/safety vault iniciando com seu pé esquerdo e então alternando para iniciar com o lado oposto no segundo vault.

Repita essa sequência dúzias de vezes, se não centenas, até os movimentos fluírem com hesitação mínima. Lute para eliminar passos extras entre os dois obstáculos, e deixe seu subconsciente guiar seu corpo.

Depois disso, comece a misturar dois tipos de movimentos. Você consegue fazer a transição de um vault para um rolamento de forma suave? Que tal passar de um vault para um salto de precisão? Seja criativo e treine todas variações de dois movimentos em que você conseguir pensar: salto de precisão para rolamento, passada para vault, vault para escalada. Você entendeu a ideia.

Crie uma música completa, não somente uma frase


Para uma segunda fase de exercícios de sequências, comece a ligar três, quatro, cinco técnicas, criando flows mais extensos. Crie uma corrida através de uma série de obstáculos que demande uma variedade de movimentos. Você consegue se balançar pelos braços e cair numa aterrisagem de salto de precisão, ligando isso a algumas passadas e então transpor algum obstáculo, tudo isso sem tropeçar nos próprios pés? Se você se sentir desajeitado e atrapalhado no início, repita a corrida de novo e de novo até que ela comece a fluir melhor.

Repetição é um ponto chave neste ponto do seu treino. Treine os movimentos e sequências repetidamente, focando-se em tornar seus movimentos cada vez mais eficientes. Alcance a perfeição através da eliminação. Trabalhe para eliminar quaisquer passos extras. Livre-se de movimentos corporais desnecessários. Pare de oscilar seus braços. Mantenha o peito para cima preste atenção à sua postura.

De forma análoga, como está sua respiração conforme você se move através das sequências de técnicas? Você está prendendo a respiração? Está ficando sem fôlego e arfando? Tente regular sua respiração junto com seus movimentos para conseguir mais vigor na série de obstáculos.

Conclusão: Preste atenção e esteja tão presente quanto possível durante as sequências que você começar a treinar. Claro que você quer que seus movimentos fluam como água, mas ao mesmo tempo você quer ser muito intencional no que está fazendo.

Ao invés de se atirar em uma série de movimentos e terminar a corrida com força bruta, esforce-se para ligar os movimentos com toda a suavidade que conseguir. Veja a si mesmo como um dançarino, interagindo com o ambiente com virtuosidade e elegância. Seja o músico, deixando as notas fluírem em uma melodia suave.

O jogo Add-on (o jogo da adição)


"Add-on" é um jogo que você pode jogar com um parceiro para treinar sequências de movimentos. Esse é um jogo bem conhecido pelos atletas criativos - ginastas, skatistas, e até mesmo snowboarders. O valor chave é que o jogo o ajuda a sair da sua rigidez e deixa o movimento se desdobrar em sequências naturais.

Como jogar Add-on

  • Encontre um ou mais obstáculos que sejam confortáveis de transpor para você e um amigo. Uma pedra grande, um tronco de árvore, um corrimão longo - praticamente qualquer coisa vai bastar para que vocês comecem.
  • Escolha uma pessoa para começar. Esse indivíduo deve executar uma técnica de Parkour com o obstáculo. Pulá-lo, transpô-lo, subir ou quicar nele, não importa.
  • Então, a segunda pessoa imita a primeira, executando exatamente o mesmo movimento, mas adiciona um movimento novo no final. Se o primeiro movimento foi um vault, a segunda pessoa pode fazer o vault no obstáculo e então seguir com um rolamento, ou uma passada, etc.
  • Após a segunda pessoa adicionar seu movimento, a primeira pessoa começa do início, fazendo o movimento inicial, a adição da segunda pessoa, e então contrubuindo com uma terceira nova técnica. 

A partir daí, você pode imaginar como o jogo se desenrola. Cada jogador executa a última sequência de movimentos e adiciona uma nova técnica, de modo que vocês acabem criando uma sequência de movimentos únicos encaixados. Acaba quando alguém não conseguir completar a última sequência executada.

Um exemplo do jogo Add-on:



Ben Musholt